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sexta-feira, 9 de março de 2007

INTRODUÇÃO À DITADURA MILITAR - TRABALHO DE CIÊNCIA POLÍTICA

Jânio Quadros – A decepção da classe média

Foi como um meteoro. De obscuro professor de ginásio no subúrbio, passando por vereador que só ocupou a cadeira depois que o PCB foi cassado, em seguida prefeito, governador de São Paulo e finalmente presidente da República do Brasil: Jânio da Silva Quadros (1917 - 1992) . Um fenômeno.
Em 1960, o Brasil estava que nem galinha de macumba: na encruzilhada. Conseguiríamos nos desenvolver mesmo, ou os problemas graves eram o sinal da crise? Então, para muita gente, Jânio parecia ser a solução.
Pelo menos parecia para as classes dominantes, porque sempre foi conservador e autoritário. Todos sabiam que ele não ameaçava com nenhum nacionalismo ou esquerdismo. Além do mais, seria apoiado pela conservadora UDN.
Parecia a solução para a classe média udenista, porque Jânio falava português com impecável gramática e isso mostrava que ele não se dirigia à “massa ignara”, mas às “pessoas de bem, instruídas, de bom gasto, que sabem o que é melhor para o país”: Além disso, vivia falando em moralidade pública, em instaurar auditorias e prender os corruptos, "botar os vagabundos dos funcionários públicos para trabalhar", em se tornar um administrador moderno e eficaz.
Jânio Quadros também parecia a solução para grande parte dos pobres. Impressionava com ternos escuros cheios de caspa no ombro, enquanto que as pessoas, fascinadas, apontavam: “Vejam, um homem do povo como nós, ele tem caspa no cabelo!” Realmente, um candidato que tinha algo na cabeça: caspa. Outra técnica eleitoreira de Jânio era, diante da multidão, abrir o paletó para tirar pão. Desses mesmos de padaria. Começava a comer um sanduíche. Não de presunto, mas de humilde mortadela. Bela imagem circense: “o homem sem vaidades, de hábitos espartanos como todos os verdadeiramente honestos, comida apressada de quem trabalha muito pelo Brasil”. No meio de um comício, Jânio desmaiava. “Oh! Que será que aconteceu? Coitado! Tanto sacrifício para enfrentar os poderosos, que não resistiu!” Como poucos, ele sabia o amor que o nosso povo devota aos políticos que aparecem como vítimas da injustiça. E então, de repente, qual Fênix ressurgida das cinzas, ressuscitava, forte, denunciante, vitorioso, na sua escalada invencível para o Palácio do Planalto!
Grande parte da população, já naqueles tempos de 1960, detestava partidos e políticos. Pois Jânio candidatou-se por um partido mixuruquíssimo, para que as pessoas acreditassem que era “o único que não tinha rabo preso”. Mas seria assim mesmo? Claro que não. Jânio Quadros montou um acordo aberto com a UDN. O próprio Lacerda, diria sem rodeios: “O caminho da UDN para o Palácio do Planalto passa pela eleição do Sr. Quadros para a presidência.”
Venceu fácil. Votação sensacional: 5,6 milhões de votos contra apenas 3,8 milhões de Lott (PSD + PTB). A UDN podia abrir mais garrafas de champanhe! Conseguiu eleger dois importantes governadores: Lacerda, na Guanabara (ex-Distrito Federal, depois que a capital foi transferida para Brasília), e Magalhães Pinto, em Minas Gerais.
Empossado na presidência, o sr. Jânio fez um governo estranhíssimo. Em pouco tempo conseguiu desagradar quase todo mundo. Em seguida, sem maiores explicações, renunciou.
Para controlar a inflação, Jânio propôs “austeridade”. No dicionário da burguesia nacional, essa palavra quer dizer salários congelados, apesar da inflação. O Brasil não mudara muito. Além disso, cortou gastos públicos. O que resultava em menos hospitais e escolas. O trigo e o petróleo perderam os subsídios. Assim, os preços do pão e da gasolina aumentaram em 100%. Quem gostou foi o FMI, que aplaudiu Jânio e prometeu emprestar dólares.
Claro que essas medidas irritavam a esquerda. Mas isso não interessava a Jânio, já que ele sempre as xingou mesmo. O problema, é que ele começou a tomar medidas estranhas que acabaram irritando seus próprios aliados direitistas da UDN.
Na verdade, o sr. Quadros tinha uma personalidade muito instável. Alguns até lançaram a hipótese de que seu governo teria sido movido a uísque. Afonso Arinos, ministro do Exterior, jurista conceituado e ligado aos udenistas, diria mais tarde: “Jânio na presidência era a UDN de porre.”
Talvez Jânio alimentasse um sonho megalomaníaco: aparecer na história como o maior líder independente do Terceiro Mundo. Nem de um lado, nem de outro. Mas será que naquele clima de Guerra Fria do começo dos anos 60 havia espaço para isso? Jânio nem se deu ao trabalho de avaliar. Dentro desse ideal de autonomia na política externa, reatou relações diplomáticas com a URSS e a China socialista. Claro que não tinha virado esquerdista. Era só uma aproximação comercial, que interessava a empresários brasileiros. O problema mesmo foi quando resolveu, sabe-se lá por que cargas d'água, condecorar com a Ordem do Cruzeiro do Sul nada mais, nada menos, do que Ernesto Che Guevara (veja o quadro abaixo). Isso mesmo, num momento em que os EUA estavam furiosos com Havana, Jânio resolve condecorar um guerrilheiro comunista da Revolução Cubana. Pelo menos, conseguiu o que queria: aparecer nas páginas de jornal do mundo inteiro. Em compensação, a UDN e o Departamento de Estado norte-americano deram murros na mesa.
Jânio era contraditório. Mas sejamos imparciais. É preciso reconhecer que ele foi o único presidente, em toda a nossa sofrida história, que teve a coragem, o peito, a audácia, o ardor cívico e compromisso de patriota de tomar uma atitude que representava séculos de sonhos, reivindicações e batalhas do povo brasileiro. Jânio Quadros teve a honra, a glória nacional, de proibir terminantemente, em todo território nacional, doesse a quem doesse, a briga de galos! E, a partir daí, o país ficou irremediavelmente dividido em dois campos políticos inimigos opostos irreconciliáveis: os galistas e os antigalistas! A galinhagem foi total. Pois é, acredite se quiser. Com tanto problema sério para o presidente cuidar, ele perdia tempo com bilhetinhos proibindo brigas de galos. (Mais tarde, Tancredo Neves, que apostava em galos de briga, desproibiu os combates. Êta governantes sérios!) Proibiu também lama-perfume, uso de biquíni nas praias, corrida de cavalos no meio da semana e daí por diante.
Até que, de repente, depois de apenas sete meses de governo, resolveu renunciar à presidência. Como se renunciasse a um simples sanduíche de mortadela.
Qual a explicação para isso? Ele nunca deu. No máximo, acusava as “forças terríveis”. Porém, se pensarmos um pouco, entenderemos. Na véspera do ato, Lacerda, rompido com Quadros, deu uma entrevista na tevê acusando Jânio de estar preparando um golpe para instalar uma ditadura. Lacerda estava acostumado a fazer denúncias sem fundamento, mas parece que desta vez ele falava a verdade. O truque de Jânio era simples. Anunciou a renúncia esperando que o povo, consternado, gritasse “Volta Jânio!”. Além disso, repare a jogada, ele sabia que seu vice-presidente, João Goulart, era odiado pelos setores conservadores do empresariado e dos militares. A renúncia era uma verdadeira chantagem contra esses grupos poderosos: “Vocês querem que eu saia? Se eu sair, olha só quem assume: o Jango!” Ora, diante disso, ele acreditava que militares, burgueses e políticos correriam para ele implorando que ficasse no cargo. Então ele responderia: "Fico, mas sob minhas condições." E quais seriam as condições? Uma ditadura pessoal do sr. Jânio Quadros. O que Lacerda denunciava. O que JQ nunca quis explicar, porque era vergonhoso para ele.
Só que fez a coisa sem nenhum preparo. Apanhou todo mundo de surpresa. Só restou ao Congresso aceitar sua decisão. Assumia a presidência, provisoriamente, o presidente da Câmara dos Deputados, Ranieri Mazzili. Não obstante, a direita não queria a posse de tango. Agora, o país vivia uma crise política terrível. Estava à beira da guerra civil.


A crise da posse de João Goulart

Como é que se explica que Jânio, apoiado pela UDN, tivesse um vice que era do PTB, arquiinimigo dos udenistas? É que naquela época, além de votar para presidente, você também votava para vice-presidente. Mais ainda: podia votar em candidatos de chapas diferentes. As duas principais chapas eram Jânio e Milton Campos (um político da UDN) contra Lott e Jango, ambos do PTB. Muita gente votou na dobradinha Jan-Jan: Jânio e Jango.
João Goulart (1918-1976) pertencia a uma família de ricos fazendeiros gaúchos, nada tinha de esquerdista. Sempre foi a favor do capitalismo. Só não concordava com a selvageria do capitalismo brasileiro. Acreditava em reformas sociais. Inclusive a reforma agrária, apesar de pertencer a uma família de latifundiários. Quando ministro do Trabalho de Getúlio, propôs aumentar o salário mínimo em 1OO%, provocando um coro de protestos dos empresários. A direita jamais esquecerá este fato. Jango não se abalava. Herdeiro da tradição populista de conciliação entre a burguesia e o proletariado, quis o apoio do PSD e do PTB, mas também aceitou alianças com a esquerda e os comunistas. Este foi o grande problema: as contradições sociais eram muito fortes. A luta de classes, aguda demais. Naquele momento, não era possível conciliar como ele pretendia. Sua incompreensão destas contradições – elas próprias motivantes – redundaram na tragédia do golpe militar de 64.
Os setores mais reacionários odiavam Goulart. Quando Jânio renunciou, João Goulart (que o povo chamava carinhosamente de Jango) deveria assumir. A UDN esperneou. A direita militar ruminava contra. Os jornais O Globo e O Estado de S. Paulo faziam coro.
Jango estava na China, em viagem diplomática. Percebeu que não dava para voltar logo. Incendiaria o país. Prudente, aguardava os acontecimentos no Brasil.
Foi quando então se levantou a autoridade de Leonel Brizola, governador do Rio Grande do Sul. Brizola comandou a resistência a este golpe branco. Através da rede pela legalidade, reuniu dezenas de pessoas, rádios e jornais que defendiam a Constituição. Afinal, a Constituição era bem clara; estando a presidência vaga, quem assumia era o vice. Não havia o que discutir. Brizola não era o baderneiro, era o defensor das leis. Por sorte, contava com o apoio do general Machado Lopes, comandante do III Exército.
O impasse estava instaurado. A qualquer momento, tropas legalistas poderiam enfrentar as forças contra a posse. Haver a guerra civil? Na hora “H”, o Congresso deu um jeitinho. Jango poderia assumir, mas sem poderes, porque agora o Brasil passava a ter um Estado parlamentarista.

O Parlamentarismo (1961 – 1963)

Quem passava a governar era o primeiro-ministro, nomeado pelo presidente. Mas o parlamento tinha de aprovar a nomeação (com certeza, tinha de estar ligado aos partidos majoritários no Parlamento, ou seja, no Congresso Nacional), caso contrário o presidente teria que indicar outro nome.
O primeiro primeiro-ministro foi Tancredo Neves, experiente político mineiro do PSD. Para formar o gabinete (sua equipe de ministros), chamou uma porção de pessedistas e dois da UDN. Moderado, Tancredo visitou os EUA, falou mal do comunismo e voltou com a mala cheia de dólares emprestados para ajudar as oligarquias do Nordeste a se perpetuarem no poder no melhor estilo coronelista. Ficou pouco tempo no governo, e pouco fez além de liberar a briga de galos, que havia sido proibida por Jânio Quadros.
Para substituir Tancredo, Jango indicou outro mineiro, San Tiago Dantas (1911 – 1964), da ala moderada do PTB, ex-ministro do Exterior (cuidava da relação do Brasil com os outros países) de Tancredo. Mas na conferência da OEA (Organização dos Estados Americanos, espécie de ONU das Américas), em Punta del Este, os EUA propuseram a expulsão de Cuba. O diplomata brasileiro se absteve de votar, irritando a direita, que em San Tiago nada via de santo. Resultado: o parlamento vetou seu nome.
Surgiu então o nome do empresário e senador paulista Auro de Moura Andrade (1915 - 1982) para ser o primeiro-ministro. Agora, para você sentir o clima do que estava rolando no Brasil da época: simplesmente estourou uma greve geral de 24 horas nas empresas estatais (refinarias, trens, ônibus, estivadores) contra a nomeação de Auro, excessivamente conservador. Greve política, operários que cruzaram os braços para mudar um governo. Mostra da força do PTB e até do PCB para mobilizar politicamente massas operárias. Mas também - todos desconfiavam - sinal de que Jango dava um empurrãozinho nos sindicatos para pressionar o Congresso. As coisas estavam esquentando no país.
O jeito foi Jango nomear outro cara, desta vez aceito. Um político quase desconhecido do PSD gaúcho, que sonhava mesmo era em descansar na pedra: Brochado da Rocha (1910 - 1962). Antes de sair (entrou em seu lugar, Hermes Lima) ele propôs - e o Congresso aceitou - antecipar o plebiscito sobre o parlamentarismo para 1963. Ou seja, o povo é que iria decidir sobre os poderes de Jango.
Plebiscito é uma consulta popular. Uma eleição em que o povo não vota em candidatos, mas a favor ou contra certa proposta. Em 1963, um plebiscito deu esmagadora vitória ao presidencialismo (proporção de 10 por 1). Acabava-se o parlamentarismo. João Goulart finalmente ganhava plenos poderes presidenciais. Mas pouco pôde fazer. Meses depois seria derrubado pelo movimento militar de 1964.

As Reformas de Base

O presidente João Goulart acreditava que o país precisava de reformas de base. O problema é que elas mexeriam com os privilégios de muita gente poderosa no Brasil. Esses poderosos viram no golpe militar a barreira que manteria sua confortável posição.
Preste atenção nessas palavras, porque elas eram muito comentadas no começo dos anos 60: “reformas de base”. O Brasil inteiro falava delas. Jango, o PTB, os estudantes da UNE, o PCB e os sindicatos eram a favor. A UDN, grande parte do PSD, quase toda a imprensa, grandes empresários e militares conservadores eram contra. O país ficaria dividido até que um dos lados impusesse sua opinião com tanques de guerra.
A primeira das reformas de base era a sonhada reforma agrária. Não era possível que o Brasil, com extensões de terras gigantescas nas mãos de proprietários que nada plantavam, permitisse que milhões de famílias moradoras do campo passassem fome porque não possuíam nenhum pedacinho de terra para cultivar. Japão, França, Alemanha, e até México e China, já tinham realizado reforma agrária. Por que o Brasil não poderia fazer uma?
Para executar a reforma agrária, o governo confisca (toma) uma parte das terras do latifundiário, ou seja, o desapropria. Essa terra é dividida entre os sem-terra, que passam a ser pequenos fazendeiros. O problema era que a Constituição só admitia a desapropriação de terras em caso de utilidade pública, se o governo indenizasse os proprietários em dinheiro. Ora, simplesmente o Estado não tinha grana para indenizar tantos latifundiários. (Eram milhões de camponeses precisando de terra!) A não ser que indenizasse com títulos da dívida pública, ou seja, uma espécie de conta que o governo assume pagar, muitos anos depois, com juros. Mas aí seria preciso mudar a Constituição. E como mudá-la se o Congresso estava cheio de conservadores da UDN e do PSD? Um projeto de expropriação sem indenização em dinheiro foi vetado em 1963. Talvez aí estivesse um dos erros de Jango: ele avaliou que poderia deixar rolar os protestos populares que o Congresso, acuado, faria as leis. Porém aconteceria o contrário: a classe dominante, apavorada com os protestos, veria em Jango apenas um fraco incapaz de controlá-los. Pediria a cabeça do presidente.
Outra das reformas de base era a reforma urbana, que controlaria o valor dos aluguéis de imóveis e ajudaria os inquilinos a comprar a casa própria. A classe média alta, dona de mais de um imóvel, ficaria apavorada com a "ameaça comunista de tomar o que é dos outros".
As reformas de base também eram reformas políticas: direito de voto para analfabetos e de sargentos e patentes inferiores nas Forças Armadas. Naturalmente, os defensores das reformas de base imaginavam que esses grupos iriam despejar votos a seu favor. Os comandantes militares torceram o nariz para a idéia de sargentos, cabos e soldados votarem. Achavam que isso traria indisciplina para as tropas. As elites e a classe média também repudiavam o voto dos analfabetos, a quem consideravam "despreparados". Só estavam preparados para trabalhar, pagar impostos, passar fome e morrer pela pátria.
As reformas de base eram bem nacionalistas. Incluíam a proibição de empresas estrangeiras operarem em setores como os de energia elétrica, frigoríficos, indústria de remédios, refinarias de petróleo, telefones. Naquela época, os nacionalistas achavam que as empresas estrangeiras atuavam nesses setores pensando unicamente em seus lucros, pouco se importando com os interesses da nação. Por exemplo, a companhia poderia achar que teria prejuízo se instalasse telefones numa cidade do interior. Pois ela não arriscaria. Então, a cidade ficaria sem os telefones e pronto. O Brasil que continuasse nos tempo do boca a boca. Além disso, os nacionalistas argumentavam que não tinha cabimento a empresa estrangeira lucrar horrores e mandar esses lucros para fora do país, haja vista que uma empresa nacional poderia fazer o mesmo serviço e usar os lucros para reinvestir no crescimento da própria economia brasileira. Os nacionalistas achavam que a maioria das multinacionais exercia uma concorrência desleal, prejudicando os empresários nacionais. Ou seja, no fundo os nacionalistas viviam de uma ilusão: a de que haveria uma burguesia "nacionalista" pronta para apoiá-los. Nunca houve.
A reforma da educação era outro ponto importante, e tinha apoio da UNE (União Nacional dos Estudantes. Havia necessidade de mais escolas e universidades públicas de bom ensino. Os estudos deveriam ser voltados para os problemas nacionais do Brasil. Eis uma idéia que fez a cabeça de muita gente na época: no ensino, como em tudo, era preciso parar de copiar modelos estrangeiros e passar a pensar de forma brasileira os problemas nacionais. Quando a gente ouve gravações de shows da época, era muito comum o artista falar coisas do tipo “temos orgulho de ser brasileiros”. Pensar o Brasil, eis a meta. Mas, o que significava isso?
As reformas de base eram uma proposta para outro tipo de desenvolvimento capitalista nacional. Mas elas mexiam com muitos grupos poderosos. Grupos que não tolerariam perder alguns privilégios. Para mantê-los, recorreriam à mão armada do golpe militar.

O Populismo de João Goulart

João Goulart, do PTB, se considerava um herdeiro político de Getúlio Vargas. Seu plano político também era populista, Ele esperava que o Estado fosse o intermediário de um acordo nacional entre os militares, os intelectuais nacionalistas, a burguesia industrial nacionalista e os sindicatos.
Todo o plano furou.
A tal burguesia industrial "nacionalista" não se empenhou nem um pouquinho a favor da reforma agrária. Ela também nada tinha de nacionalista. Estava assanhada para montar negócios com as multinacionais,
Os militares se apavoraram com a agitação sindical. Para eles, Jango era incapaz de conter o avanço comunista.
Goulart realmente tentou usar os sindicatos a seu favor, Estimulou greves políticas para pressionar o Congresso, bajulou pelegos. Isso irritava demais a direita, que o acusava de querer montar uma "república sindical" ao estilo peronista, Para complicar, o movimento das trabalhadores estava ganhando autonomia.

A mobilização popular

Se você perguntar a uma pessoa que apoiou o golpe militar de 1964, ele provavelmente o justificará assim; "Você não sabe como era aquela época, Um horror, greve todos os dias. Nada funcionava. O país estava virando uma baderna, uma desorganização completa. Os militares vieram para botar ordem no país, salvaram a gente do caos."
Afinal, o Brasil estava ou não uma zona completa? Depende do ponto de vista. Vamos supor que você fosse um rico latifundiário. Podia ser que você precisasse de um favor do governo, tipo um financiamento camarada do Banco do Brasil. Como conseguir? Uma das possibilidades era sua associação de proprietários rurais pressionar o governo para obter ajuda. Que bom que sua organização podia te apoiar, não?
Se você fosse um humilde trabalhador rural, não teria tanta coisa assim. Até os anos 60 não existia nenhum sindicato rural no Brasil. As leis trabalhistas também não valiam no campo. Era um Brasil esquecido, abandonado, desprezado. Mas as coisas começaram a mudar.
Formavam-se as Ligas Camponesas. Elas organizaram milhões de camponeses nordestinos, gente que era dona de uma terra tão pequena (minifúndio) que não dava para sobreviver, trabalhadores que vigiam num pedacinho cedido pelo fazendeiro (eram moradores) e que arrendavam (pagavam aluguel pela terra) a preços cada vez mais cruéis, que tinham de trabalhar certos dias de graça (o cambão) para o senhor da terra. Em alguns lugares do Brasil, a agricultura já usava máquinas agrícolas e pesticidas. Ou então, o fazendeiro parava de plantar para criar gado bovino. Nos dois casos não precisava mais de tantos camponeses. Mandava os jagunços expulsarem os moradores das rocinhas. Pois as Ligas Camponesas, lideradas por um advogado pernambucano de idéias socialistas, Francisco Julião, organizavam esses homens na luta por seus direitos. Faziam greves, recusavam-se a sair das terras e, principalmente, exigiam do governo a reforma agrária.
Em Pernambuco, 1963, dezenas de milhares de trabalhadores das usinas de açúcar fizeram uma greve espetacular. Os jagunços caçaram líderes do movimento, socaram a cara para afundar os dentes, cortaram à faca, incendiaram barracos, deram tiros de revólver. Não adiantou. Os patrões tiveram de ceder. E, pela primeira vez, os empregados das usinas conquistavam o direito de ganhar o salário mínimo (que na época valia bem mais do que o de hoje).
Ponha-se no lugar de um latifundiário; para eles, a existência de ligas camponesas e de greves de trabalhadores rurais era sinônimo de organização ou de baderna? E para os camponeses, ter uma associação para defender seus interesses, era organização ou baderna?
Em 1963, Jango sancionou o Estatuto do Trabalhador Rural. Finalmente, as leis trabalhistas começavam a chegar ao camponês! Agora, a legislação obrigava o fazendeiro a pagar salário mínimo, assinar carteira de trabalho, garantir o repouso semanal e remunerar as férias. Ou seja, nada de radical, nada de criptocomunismo, nada de incendiário. Só um pouco de justiça.
Você acha que os latifundiários concordaram? Claro que não! Para eles, Jango era um terrível agitador, um desgraçado que esculhambava o país. Miguel Arraes, governador de Pernambuco, pela primeira vez botou a polícia do lado dos camponeses, do lado da lei. Por isso, era detestado pelos usineiros.
Acho que você entendeu o significado do golpe militar de 64. Dá para você perceber um dos motivos para que a história tantas vezes seja interpretada de modos diferentes, não é mesmo? Será que tantos pontos de vista significam mesmo que não é possível encontrar a verdade histórica? (Reflita sobre isso. Estes tipos de reflexões caracterizam uma História crítica.) Bem, para uma boa parte da classe trabalhadora, intelectuais, políticos de esquerda e estudantes, o Brasil não era uma baderna. Estava é ficando organizado como nunca esteve antes. As pessoas estavam descobrindo a importância de se associar para lutar por seus direitos, Em vez de lamentar suas misérias, erguiam-se e lutavam para acabar com elas.
E as greves? Elas eram muitas, como se dizia? Talvez essa pergunta não seja a melhor. O que cabe indagar é: o movimento trabalhista conseguia algum benefício? Realmente, apesar da inflação, os salários cresciam. As greves estavam se revelando importantes instrumentos de luta. Em 1962, foi criado o CGT (Comando Geral dos Trabalhadores), uma central sindical visando unificar as lutas do país inteiro. Para os trabalhadores, essas vitórias eram o resultado da organização operária. Afinal, depois de uma greve geral, foi aprovada a lei do décimo terceiro salário (1962). Para os empresários, tudo isso não passava de uma baderna promovida por sindicalistas irresponsáveis e fanáticos comunistas: "O Exército tem de acabar com esse abuso! O país precisa de ordem para os negócios prosperarem!"
A UNE vivia uma virada sensacional. Seu presidente em 1960, o goiano Aldo Arames, pertencia à AP (Ação Popular). O pessoal da AP vinha da JUC (Juventude Universitária Católica) e, em princípio, não era marxista. Na prática, namoravam cada vez mais o comunismo chinês. Até 1964, eles estariam na direção da UNE. Aliás, em 1963 o presidente da UNE era o paulista José Serra, anos mais tarde ministro neoliberal de FHC: o que as pessoas fazem com os ideais da juventude? Eles somem com o tempo, tal como as espinhas?
Naquela época os estudantes levavam muito a sério a luta política. A geração dos anos 60 e começo dos 70 acreditava que a luta política realmente mudaria o mundo inteiro. Por isso a UNE era tão importante e tão perigosa para os poderosos.
O pessoal da UNE acreditava que o ensino não podia ser elitista nem "alienado", como se dizia na época. A universidade precisava ser comprometida com as necessidades nacionais, formar pessoas capazes de pensar os problemas brasileiros em vez de ficar seguindo as instruções norte-americanas. Os conhecimentos não deveriam ficar presos à sala de aula e ao laboratório, eles deviam ser levados ao povo.
Dentro desses ideais, a rapaziada da UNE criou os CPC (Centros Populares de Cultura), nos quais se faziam representações de peças de teatro na rua, de autores como Oduvaldo Viana Filho e Gianfrancesco Guarnieri, shows de música e poesia, sessões de cinema com filmes politizados (diretores como Eisenstein, Pasolini, Glauber Rocha), debates em praça pública e auditórios. Tudo com objetivo educativo: de modo divertido e fácil de entender, mostravam às pessoas nas ruas a necessidade de combater o "imperialismo norte-americano" e de defender as reformas de base. Ah, foram tempos cheios de idealismo da juventude... E hoje em dia, o que querem os jovens para o mundo? As espinhas serão mais importantes do que os sonhos?
No Congresso Nacional, a força de apoio de Jango era o PTB, segundo partido em tamanho. Brizola, por exemplo, tinha sido eleito deputado federal com a maior votação do Brasil (pela Guanabara! Prova de sua popularidade junto à antiga capital). A Frente Parlamentar Nacionalista unia os deputados e senadores favoráveis às reformas de base.
O problema é que Brizola não se entendia com o irmão de sua esposa, ou seja, o presidente da República do Brasil. Ele queria que Jango avançasse com mais ímpeto, fazendo a reforma agrária na marra, nacionalizando de cara vários monopólios estrangeiros. Para defender suas idéias, propunha que os militantes brizolistas se juntassem nos Grupos dos Onze que, entre uma ou outra partidinha de futebol com time completo, se fariam de sentinelas a favor das reformas de base. Sonhava em ser presidente e, para isso, deu força para o slogan "Cunhado não é parente. Brizola para presidente!". Na verdade, Brizola era considerado um "radical" por Jango e um "inconseqüente" pelos comunistas, sem falar no ódio hidrofóbico que provocava nos generais de extrema-direita. No fundo, Brizola não percebia que o confronto só favoreceria o lado da reação.
Apesar da liberdade de atuação (Prestes era uma figura pública, dava entrevistas e palestras), o PCB mantinha-se na ilegalidade. Para escapar da proibição da lei, os comunistas elegeram diversos deputados e vereadores pela legenda do PTB.
Como de costume, o PCB tinha enorme prestígio entre estudantes e sindicalistas. Mas a força dele ainda era bem pequena. Além disso, continuava a achar que o Brasil não estava preparado para o socialismo. Por isso, apoiava as reformas de base de Jango, que eram apenas uma melhorada no capitalismo nacional. Ou seja, esse negócio de que "comunistas estavam se infiltrando em tudo" era só uma paranóia da direita. Tinham força porque eram organizados e conscientes, mas eram relativamente poucos.
Talvez a melhor maneira de traduzir o clima intelectual e político do Brasil naquele começo dos anos 60 seja a descoberta de uma palavra manjadíssima e que foi inventada exatamente naquela época. Sabe qual é? O verbo conscientizar. Ele surgiu naquele momento porque expressava com perfeição o que os brasileiros estavam fazendo: o Brasil começava a pensar a si mesmo, começava a tomar consciência de seus problemas e de como resolvê-los por conta própria. Parecia que o país inteiro estava ficando mais inteligente. Em todos os cantos, nos botequins e salas de aula, nos papos da fila do ônibus, na saída do cinema, na praia, todo mundo tinha idéias novas, todo mundo queria descobrir o que estava errado com o Brasil. As pessoas acreditavam que era possível mudar muita coisa para melhor. As pessoas estavam se conscientizando.
É óbvio que as forças dominantes não dormiram de touca. A direita também tinha suas armas, seus soldados e generais - e não estamos dando nenhuma indireta boboca.


A reação da direita

O Brasil do começo dos anos 60 estava pegando fogo. De um lado, as forças da mudança, que apoiavam as reformas de base. Do lado contrário a potência do conservadorismo de direita.
Quem era contra o governo João Goulart? Em primeiro lugar, naturalmente, os latifundiários. Quando ouviam falar em reforma agrária tinham vontade de passar com o trator em cima de Jango. Os empresários também estavam irritados com as greves e com medo de serem obrigados a aumentar demais os salários dos empregados. Sem falar no pavor de o governo inventar impostos pesados sobre as grandes fortunas. Só de falar nisso, tinham vontade de passar com a Mercedes-Benz em cima de Jango. Aliás, Jango apostou que teria apoio do empresariado nacionalista. Triste engano: a burguesia brasileira estava assanhadíssima para ter relações com os capitalistas ianques. Mais do que um casamento, sonhavam longas noites de amor.
No Congresso Nacional, a UDN e outros deputados conservadores formaram a Ação Democrática Parlamentar para bloquear as reformas de base. Apesar de a Ala Moça do PSD (Ulisses Guimarães e outros) e a Ala Bossa Nova da UDN ( José Sarney, José Aparecido e outros) aceitarem um pouquinho das reformas de base, no final, grande parte do Congresso (inclusive essas figuras) estava em rota de colisão contra o presidente. Cada vez mais o PSD juntava as patas com as da UDN.
A classe média, geralmente udenista, tinha horror a um presidente que se aproximava dos trabalhadores. As greves que paralisavam os transportes e os serviços de luz irritavam demais. Acreditavam que os aumentos salariais só serviam para aumentar a inflação. Para piorar, ainda havia uma infâmia; "Com tantas greves e aumentos; qualquer dia desses um operário vai estar ganhando quase tanto quanto eu!" - exageravam os profissionais liberais. No fundo, o velho elitismo, o velho pavor de a empregada doméstica compartilhar o mesmo elevador, de o filho ter como colega de escola o filho de um operário, de a filha vir a namorar um pé-rapado.
A classe média balança como um pêndulo, ora para um lado, ora para o outro. Pequenos empresários, profissionais liberais e assalariados bem remunerados sabem que não são os graúdões, os capitães da indústria, os banqueiros. Mas sua instrução universitária, seus sonhos de consumo, os bairros onde moram, os afastam dos trabalhadores. Existe coisa mais maluca do que ouvir que' "Neste país, a classe média é a mais sacrificada?" Pois dizem isso com orgulho. Como se morar numa favela, pegar o trem lotado às cinco e meia da manhã, se enfiar numa fábrica fedorenta por horas a fio fosse um passeio em um carro zero...
As greves, os conflitos de classes cada vez mais agudos e as incertezas da política janguista deixavam a classe média desnorteada. A coisa era mais complicada do que telenovela. Os debates parlamentares com tantos discursos vazios e inúteis, a inflação que aumentava sem parar, os eternos escândalos de corrupção a faziam entrar em parafuso. E o que ela mais queria, como sempre, era segurança. A velha ilusão de que um governo autoritário traz a tranqüilidade. A classe operária e os camponeses que se danassem, o que importava é que a compra de um novo televisor estava salva. Trocou a liberdade pelo eletrodoméstico.
Uma pesquisa de opinião do Ibope, feita na véspera do golpe de 64, mostrou que a maioria dos brasileiros considerava bom o governo de Jango. Mas grande parte dessa maioria era de gente que não moveria um dedo para defendê-lo, ou seja, milhões de pessoas passivas, que ainda aceitavam o tratamento de carneiros.
Além da oposição sistemática da UDN, dos latifundiários, dos grandes empresários e da classe média, Jango ainda tinha de enfrentar a grande imprensa. Jornais como O Estado de S. Paulo e O Globo eram implacáveis. O presidente aparecia como culpado de tudo de ruim que havia no país. Nas manchetes, coisas como "Jango é marionete nas mãos dos comunistas", "Querem uma república sindicalista", "País à beira do caos e da anarquia" eram comuns e faziam a cabeça das pessoas.
Havia sinais de mudança da Igreja. O papa João XXIII nas encíclicas Mater et Magistra (1961) e Pacem in Terris (1963) atacava o comunismo mas defendia a necessidade de mudanças graduais na sociedade. O Concílio Vaticano II confirmou essas idéias e o novo papa, Paulo VI, deu sinal verde para o engajamento dos católicos em projetos de reformas não-socialistas. Alguns estudantes da JUC (Juventude Universitária Católica) tinham certa simpatia pelas idéias marxistas. Formariam a AP, de onde vieram os presidentes da UNE nos anos de 61 a 64. (Falamos disso há pouco, lembra?) A maioria do clero, entretanto, continuaria muito reacionária. Havia até a extrema direita, ligada a figuras tradicionalistas como Dom Castro Mayer e Dom Geraldo Sigaud, que trocava figurinhas como uma organização católica fascistóide, a TFP (Tradição Família e Propriedade). No Nordeste, os padres tentavam formar sindicatos rurais controlados pela Igreja e contrários às ligas camponesas. Na véspera do golpe, padres e freiras organizaram passeatas com milhares de pessoas apoiando uma intervenção militar.
Quem não estava gostando nem um pouquinho das travessuras de Goulart era o Departamento de Estado dos EUA. As propostas nacionalistas de controlar a remessa de lucros das multinacionais para o estrangeiro, de entregar à Petrobrás o refino de todo o petróleo e de estatizar diversas companhias norte-americanas eram muito desagradáveis para Tio Sam.
O grande fantasma da época foi a Revolução Cubana, liderada por Fidel Castro. Socialismo, guerrilha, Che Guevara, marxismo, essas coisas estavam virando moda entre os estudantes. E se na miséria nordestina surgissem focos guerrilheiros? Nos anos 60 e 70, no Brasil e em quase todos os nossos vizinhos latino-americanos foram dados golpes militares. Por trás, o pavor da repetição de Cuba.
No Brasil, a direita também se organizava. Na época das eleições, o IBAD (Instituto Brasileiro de Ação Democrática) enchia as televisões, rádios e jornais com publicidade política a favor de candidatos udenistas ou semelhantes. Centenas de candidatos tiveram a campanha eleitoral financiada pelo IBAD, que por sua vez recebeu grana direta dos EUA (através da CIA) e de grandes multinacionais instala das no Brasil. Financiamentos ilegais, diga-se de passagem, Houve investigação e as provas apareceram. Mas Jango, querendo mostrar boa vontade com os EUA, mandou deixar para lá.
O IPES (Instituto Brasileiro de Pesquisas Sociais) planejava propagandas em veículos de comunicação atacando os comunistas, os nacionalistas e João Goulart. O embaixador norte-americano, sr. Lincoln Gordon, tinha uma estranha liberdade de movimentos e um comprido focinho para se meter em assuntos alheios a seu país, Freqüentava quartéis, ouvia os lamúrios servis de Lacerda, mandava recados para a imprensa. É óbvio que a embaixada tinha se tornado um covil de agentes secretos da CIA, agindo nos bastidores a favor de um golpe militar.

Os militares

Por que os militares deram o golpe? Para começar, por causa da própria formação deles. Nas academias, tinham aprendido que as greves, os protestos sociais, as manifestações populares eram uma "baderna" intolerável. Para eles, o que faltava ao país era a "disciplina", a "ordem", Felizmente, o general e o almirante não ficam desempregados, nem recebem o salário ridículo de um peão. Mas essa boa condição, infelizmente, dificulta um pouco o entendimento pleno do drama dos trabalhadores assalariados.
É bom lembrarmos que os oficiais tinham irmãos, primos, tios que geralmente vinham da classe média. Foi dela que absorveram importantes valores. Portanto, muitos foram educados numa família conservadora, que não tolera a "baderna do zé-povinho". E aí tinham simpatia pela UDN e rejeitavam a aproximação populista de Jango com os sindicatos.
Os militares, como tantos brasileiros decentes, se enojavam com a existência de políticos corruptos. Naquela época, começou a rolar a idéia de que "A honestidade é de cor verde-oliva", ou seja, a cor da farda do Exército. Para muitos militares e civis, o país só teria governos honestos quando o Estado estivesse nas mãos dos generais. Um triste engano, porque nas ditaduras é que a corrupção rola solta, já que a sociedade não consegue fiscalizar mais nada.
Nas escolas militares, havia uma doutrinação anticomunista fortíssima. Qualquer greve era vista como "armação dos comunistas contra o Brasil",
O mais difícil de aceitar era a influência dos EUA sobre a capacitação de nossos militares. Alguns dos melhores oficiais do Brasil fizeram cursos de aprimoramento com os americanos, inclusive na Escola do Panamá, fundada em 1951. Voltavam de lá com a lição de que "O que é bom para os EUA é bom para o Brasil; o que é ruim para os EUA é ruim para o Brasil".
Aqui no Brasil, foi fundada em 1949 a ESG (Escola Superior de Guerra), Nela, desenvolveu-se a famosa DSN (Doutrina de Segurança Nacional), que fez a cabeça de muitos militares. Capacetes com idéias da Guerra Fria. Atenção: o golpe e a ditadura militar procuravam seguir os princípios da Doutrina de Segurança Nacional, divulgados pela ESG. Diga-se de passagem, na ESG estavam as cabeças militares mais preparadas - daí o apelido de Sorbonne (nome da famosa universidade francesa). À sua testa, o general Golbery do Couto e Silva (1911 - 1987), bruxo intelectual do regime pós-64.
Afinal, o que é a DSN? Apesar do nome nacional, teve origem nos EUA. Vamos resumir suas idéias. Para começar, a DSN considerava que praticamente já tinha começado a Terceira Guerra Mundial. Isso mesmo que você leu. Já dá para ver o quanto ela tinha da paranóia da Guerra Fria. Pois bem, a tal guerra mundial era do Mundo Livre contra o Comunismo Internacional. O lado do bem era o dos valores da civilização cristã ocidental tais como a propriedade privada, o individualismo, o capitalismo, as liberdades, a democracia. O inimigo era o mundo do mal, "do ateísmo, da imoralidade, da socialização dos meios de produção, do Estado totalitário, da ditadura monstruosa dos comunistas".
Acontece que "essa guerra não era como as outras", Porque o inimigo raramente atacava de frente (como atacou na Guerra da Coréia, 1951-53, ou na Guerra do Vietnã, nos anos 60). Ele preferia a guerra subversiva, ou seja, infiltrava-se na sociedade para ir minando por baixo, sem ninguém perceber. Os terríveis agentes comunistas "penetravam, camuflados, nos sindicatos, no Congresso, nas entidades estudantis, nos meios intelectuais, na imprensa e até nos quartéis. Enfraqueciam a moral, destruíam a estabilidade do país, tumultuavam de propósito. O caos servia aos desígnios dos vermelhos. Porque o passo seguinte era a guerra revolucionária através de greves gerais, guerrilha, formações de sovietes até a tomada do poder, quando o amado Brasil se tornaria uma província escrava da Rússia".
Como você vê, uma simples greve operária, uma sessão de cinema seguida de um debate com a platéia, a publicação de um livro, tudo isso era visto como resultado da infiltração de agentes soviéticos, cubanos ou chineses. Achavam que até a maconha e as revistinhas com mulher nua eram trazidas pelos malvados bolcheviques, dispostos a destruir a moral e a saúde de nossos jovens. Alguém precisava salvar o Brasil! Esse alguém, óbvio, eram os militares sempre alerta.
Acontece que a DSN não era apenas negativista, no sentido de querer negar, destruir uma situação. Ela tinha um lado construtivo, ou seja, propunha criar um novo país. Atenção para isso, porque era a mostra de que os militares pretendiam ficar muito tempo no governo.
A DSN ligava-se à uma visão geopolítica. A geopolítica foi inventada pelo imperialismo alemão no final do século XIX. Sua idéia é a de que o destino de um país se relaciona com suas condições geográficas. O general Golbery do Couto e Silva, especialista em geopolítica, cabeça-chefe da DSN brasileira, dizia que o Brasil, país gigantesco com população crescente, tinha o destino de se tornar a grande potência capitalista do Cone Sul. Para isso, os militares assumiriam a direção do país, mobilizando todos os recursos econômicos, políticos, psicossociais e militares. Era o binômio Segurança e Desenvolvimento, lema bem parecido com o velho “Ordem e Progresso” dos positivistas republicanos. De certo modo, também, a consagração dos velhos ideais tenentistas dos anos 2O, não é mesmo?
Pois só faltava a gotinha d'água para os militares agirem. Ela viria com a rebelião dos marinheiros e o famoso Comício da Central do Brasil.

O golpe militar de 1964

As lutas de classes chegaram ao ponto mais agudo. Valia tudo, até mesmo calúnias e baixíssimo nível. Madames subiam às favelas para alertar que "com Jango, em breve o comunismo vai mandar no Brasil. Aí, o Estado vai tomar tudo dos pobres, inclusive os filhos, que serão enviados para Moscou e nunca mais voltarão". Panfletos espalhavam que Jango baixaria um decreto ordenando que os moradores dividissem seus apartamentos com os favelados. Os famintos desceriam o morro aos gritos de "isso aqui é nosso!" para ocupar as casas das pessoas de bem. As solteironas se arrepiavam de medo dos curradores bolcheviques, com aquelas barbas cubanas, charutos enormes com a ponta em brasa, gritos selvagens de cossacos russos, exalando hálito de vodca e terríveis olhares de anos de leitura leninista misturados com a cobra pela propriedade alheia.
Brizola foi convidado a proferir uma palestra sobre “reforma agrária” em Minas Gerais. Não conseguiu. Um coro de senhoras e senhoritas, rezando o temo, pedia a Deus que livrasse o Brasil do comunismo e da reforma agrária. Como se Jesus fosse o paladino da desigualdade social!
Jango resolveu apresentar sua última carta: as reformas de base teriam de passar "por bem ou por mal", como se dizia. No dia 13 de mamo de 1964, apesar do feriado decretado de surpresa pelo governador Lacerda, um oceano de centenas de milhares de pessoas compareceram ao célebre Comício da Central do Brasil. Perto dali (estação de trens da Central, no Rio de Janeiro), ficava o Ministério da Guerra, com a estátua de Caxias olhando grave para aquelas faixas xingando Lacerda e os gorilas (generais golpistas), exigindo a reforma agrária, ao lado das inconfundíveis bandeiras vermelhas com foice e martelo. No comício, da bela e jovem esposa, João Goulart anunciou que estava enviando ao Congresso as primeiras reformas de base: expropriação de latifúndios improdutivos, nacionalização das refinarias de petróleo. A galera foi ao delírio de felicidade, sem ter noção de que em duas semanas Jango seria derrubado.
Meia dúzia de dias depois, foi a vez de a classe média paulista dar o troco. Associações de donas de casa, esposas de maridos com altos vencimentos mensais, damas da alta sociedade - preocupadas com as unhas, os vestidos da Maison Chanel e o comunismo -, pastores evangélicos, gigolôs, comerciantes, policiais, bicheiros, amantes de esposas de maridos com altos vencimentos mensais, associações de solteironas encalhadas, grupos de defesa dos cachorrinhos de pelúcia e demais organizações representativas mobilizaram milhares de fanáticos nas Marchas da Família com Deus pela Liberdade. Rezavam para que Deus preservasse os nossos valores; o latifúndio tão eterno quanto o Espírito Santo, as contas bancárias dos devotos do capital, a virgindade das mocinhas de família, a boca desdentada dos meninos favelados.
O toque final foi provocar as Forças Armadas. Os marujos da Marinha de Guerra criaram uma associação para defender seus interesses, quase um sindicato. Coisa absolutamente proibida pelos comandantes. Seu líder, o cabo Anselmo, era um sujeito estranho que adorava radicalizar. Parecia que gostava de ver o circo pegar fogo. Hoje, sabe-se o motivo. Cabo Anselmo já confessou que era um agente da CIA (serviço secreto dos EUA). Triste ironia da história; enquanto os almirantes caçavam e não encontravam agentes da KGB (espionagem da URSS), por debaixo das barbas deles havia um cara plantado pela CIA com a função de trans bordar o balde da paciência dos comandantes militares brasileiros.
Pois o ministro da Marinha proibiu que os marinheiros comemorassem o segundo aniversário de sua associação. Mesmo assim, eles fizeram a festa, lá na sede do sindicato de metalúrgicos do Rio de Janeiro. Para puni-los, deslocaram-se fuzileiros navais para a área. Mas em vez de prender os marinheiros, confraternizaram-se. Tal como no famoso filme O Encouraçado Potemkim. Por fim, os marinheiros se renderam porque tiveram a promessa de anistia de Jango, que foi cumprida. As Fonas Armadas jamais perdoariam o presidente por ter permitido O desrespeito à hierarquia militar.
A esquerda parecia não ver as nuvens pesadas no ar. Prestes deu entrevista dizendo que o PCB cortaria a cabeça dos gorilas (generais golpistas) caso tentassem algo. Pois eles tentaram...
No dia 31 de mano de 1964, o general Olímpio Mourão Filho botou o cachimbo na boca, deu umas baforadas, encheu o crânio de fumaça e precipitou o golpe. Tinha o apoio do governador mineiro (e banqueiro) Magalhães Pinto. Na Guanabara, Lacerda entrincheirou-se no Palácio Guanabara, aguardando O ataque dos fuzileiros navais liderados pelo comandante Aragão. Não houve ataque nenhum. Não houve choque militar, Não houve nenhum bloqueio.
Jango voou de Brasília para Porto Alegre. De lá, percebeu que a resistência faria correr o sangue dos brasileiros. Preferiu se exilar no Uruguai. Mas antes mesmo de renunciar, o senador Auro de Moura Andrade já anunciava o novo presidente: Ranieri Mazzilli, da Câmara dos Deputados.
Agora, curiosa coincidência, no momento em que os militares deram o golpe, havia uma força-tarefa da Marinha de Guerra norte-americana rumo à costa brasileira, incluindo porta-aviões, fragatas com mísseis, fuzileiros, o diabo. Operação secreta Brother Sam: se o golpe brasileiro não fosse vitorioso, nossos amiguinhos ianques dariam uma fona para os generais patrióticos verde-amarelos. Como é que sabemos disso? Porque os EUA são um país curioso: eles mesmos, alguns anos depois, revelaram ao mundo os documentos secretos da operação. Vantagens da democracia.


O significado real do golpe e da ditadura militar

Os militares tinham o projeto de mudar o Brasil profundamente. Por isso, chamaram o golpe de “Revolução de 1964”, Mas uma verdadeira revolução só acontece quando se muda radicalmente a estrutura econômica e política da sociedade. Por exemplo, a Revolução Francesa de 1789, que destruiu o sistema feudal e o absolutismo monárquico. Ou a Revolução Cubana de 1959, que acabou com o latifúndio e o poder das elites guiadas pelos EUA. No Brasil, a estrutura econômica continuou a mesma: capitalismo, latifúndios, forte presença do capital estrangeiro, Na estrutura política, o principal foi preservado: a burguesia continuava no poder. Apenas não o exercia diretamente, mas sob a proteção dos militares.
É um grande erro achar que o governo autoritário implantado em 1964 foi uma ditadura sobre toda a população, Ou que o poder político ficou todo na mão dos militares.
Ora, nós já vimos quem desejava a derrubada de Goulart; aqueles que se sentiram prejudicados pela organização popular e pelas Reformas de Base - os latifundiários, os grandes empresários, as multinacionais, os EUA. Vários historiadores e sociólogos já se fartaram de provar que foram eles que bolaram o golpe. Ou seja, Jango foi derrubado por uma conspiração conjunta de militares e também de civis.
Os militares foram os executores. Fizeram o serviço pesado. Mas os principais beneficiados com o regime militar foram os grandes empresários, Eles eram ministros, assessores, secretários. Viviam nos gabinetes em Brasília, pedindo favores, aconselhando, pressionando militares. O fato de a ditadura obrigar os trabalhadores a ficarem quietos deixou o campo livre para o mais selvagem dos capitalismos.
Na verdade, o regime militar foi uma ditadura militar e civil, Porque os civis foram a maioria dos governadores e prefeitos de capitais, havia um partido político que apoiava o regime (a Arena) e os ministros da área econômica (fundamental) eram todos civis. É ridículo achar que todos os militares foram corruptos. Ao contrário, a maioria dos generais, coronéis e almirantes não roubou dinheiro público. E se a gente pegar todo o dinheiro ganho pelos oficiais, incluindo as eventuais roubalheiras, certamente não chegará aos pés do que uma única multinacional lucrou no mesmo período.
Não podemos olhar a história de forma maniqueísta, achando que ela se reduz a uma briga entre os mocinhos e os bandidos. Claro que isso não quer dizer que não exista verdade, que qualquer interpretação da realidade seja válida ou que devamos aceitar tudo o que aconteceu. Mas nos alerta contra as simplificações. O que queremos dizer com isso? Que os militares não derrubaram Jango e implantaram uma ditadura porque queriam fazer do país um campo de caça para o capitalismo selvagem. Sim, a ditadura teve momentos de desrespeito aos direitos humanos e de exploração brutal do povo trabalhador, Mas nem todos os militares sabiam disso, vários deles acreditaram que estavam sendo patriotas, uns nem achavam que haveria uma ditadura, Pensaram que estavam evitando uma ditadura comunista ou uma ditadura de Jango (temiam que ele e Brizola fechassem o Congresso implantando algo parecido com o Estado Novo). Outros, orientados pela DSN, acreditavam que o novo regime iria beneficiar o Brasil.
As Forças Armadas planejavam a modernização econômica do Brasil, embora feita autoritariamente, Mas uma ditadura reprime ou incentiva a corrupção e a exploração do povo?
Karl Marx dizia que não se pode julgar uma pessoa a partir do que ela pensa sobre si mesma. O que vale para os regimes políticos, O projeto militar modernizou a economia mas favoreceu principalmente as elites. Foi isso que aconteceu, mesmo que não houvesse essa intenção. Portanto, aconteceram muitos erros, O passo inicial já era equivocado, Conhecer esses erros é uma arma de luta contra os que nos querem condenar a repeti-los.

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